UMA LONGA ESPERA

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Em um corredor repleto de crianças, um senhor de cabelos brancos e semblante calmo permanece sentado em uma cadeira, apenas observando os pequenos à sua frente. Ele mexe no boné e tira algum papel do bolso, que parece ler sem muita atenção. 

“Manoel”, chama um dos médicos. 

Ele se levanta e entra na sala.

Nenhuma criança entra junto com ele. Ele não é avô, nem pai de nenhum paciente. Ele é o paciente.

Do alto de seus 63 anos de idade, Manoel tem uma pequena fissura no lábio. Um bigode ralo esconde parte da fenda, mas ainda assim é possível enxergá-la. É incomum a Operação Sorriso receber pessoas nessa faixa etária com fissura nunca operada, mas elas existem e estão espalhadas pelo Brasil, só que vivem afastadas do olhar da maioria.

Manoel está acompanhando de sua esposa, Fátima, também de 63 anos de idade. Vindos de Humaitá, uma pequena cidade do Amazonas às margens do Rio Madeira, o casal viajou 3 horas de ônibus até Porto Velho para que Manoel pudesse participar da triagem da Operação Sorriso.

Manoel é quieto. Quem conta a história de vida dele é Fátima.

A primeira esposa de Manoel morreu de cólera, deixando 4 filhos para ele criar. “Tive que virar pai e mãe”, lembra. Na época, com 35 anos, ele deixou o emprego no interior e se mudou para a cidade grande. O trabalho de pedreiro garantiu o sustento para a família e a construção de uma casinha para a família morar.

O filho caçula também nasceu com fissura labial. Quando completou 2 anos de idade, Manoel conseguiu apenas o dinheiro necessário para pagar pela cirurgia do filho, então a dele ficaria para depois.

Os anos foram passando e Manoel foi deixando essa questão de lado. “As pessoas olham bastante pra minha boca, mas chega um momento que a gente não liga mais”, diz. 

Fátima entrou na vida de Manoel por acaso, catorze anos atrás. Natural de Tapauá, também no Amazonas, ela e seu marido (na época) se mudaram para Humaitá para os filhos estudarem. Porém, ele a deixou com as crianças para ir viver com outra mulher.

Fátima foi trabalhar no bar de uma prima e Manoel frequentava este mesmo bar. Foi assim que se conheceram. “No começo éramos só amigos. A gente conversava um pouco e depois ia cada um pro seu lado. Mas fomos nos conhecendo melhor, até que um dia eu percebi que ele tinha alguma coisa que batia comigo”, lembra ela com um sorriso no rosto.

Um ano se passou até que ele a convidou para irem morar juntos. Compraram uma casinha de madeira e se mudaram para lá. E assim estava formada uma nova família, que contava com 12 filhos e 25 netos no total. “Estamos lá há 3 anos e moramos só nós dois, mas quando os filhos vêm visitar é só alegria”, diz Fátima.

Mal sabiam eles que o destino de Manoel mudaria a partir de um acidente com um genro dela, Agripino, que morava em Porto Velho. Após cair da moto, ele teve sequelas e precisou ficar em repouso na casa de um dos filhos de Fátima, na capital de Rondônia.

Uma enfermeira voluntária da Operação Sorriso, que também trabalha no serviço de saúde de Porto Velho, foi buscar Agripino para levá-lo ao hospital para fazer um exame e, ao chegar na casa, encontrou Fátima e Manoel.

“Olhei pra ele e disse: seu Manoel, tem um grupo que vem aqui pra Porto Velho em dezembro pra operar quem tem lábio leporino. O senhor quer operar com eles?”, conta a enfermeira.

O ‘sim’ veio tímido, baixinho.

Fátima diz que deu muita força para que Manoel não desistisse da cirurgia com a Operação Sorriso. Segundo ela, nem a distância, nem a idade deveriam impedi-lo de correr atrás desse sonho. “Eu tenho um filho com deficiência, que não tem tratamento. O lábio dele não é doença, é só um defeitinho que dá pra corrigir, então falei que a gente ia atrás do tratamento”, diz ela.

Ela confessa ainda que não quer que ele tenha mais vergonha de sair na rua, por saber que as pessoas vão ficar olhando para o lábio dele. “Sonho em vê-lo mudado, com o lábio fechado. Não vê-lo sorrir me dói demais. Mas depois da cirurgia sei que ele, que já é bonito, vai ficar ainda mais”, diz, com um sorriso aberto e olhando carinhosamente para Manoel. 

***

No dia da triagem, Manoel olhava para os lados sem vergonha. Quantas crianças correndo ao seu redor com o lábio igual ao dele...

A enfermeira que o avisou sobre a missão foi falar com ele no instante que o viu na fila dos pacientes. “Seu Manoel, tô muito feliz de te ver aqui!”

A alegria por ver que a tão sonhada cirurgia de Manoel estava cada vez mais, fez com que Fátima vivesse emoções que há muito não sentia. “Nem almocei, de tão ansiosa. Chegamos cedo e ficamos até as 18h, mas tenho certeza que essa espera vai valer a pena”, diz ela.

***

A notícia de que ele havia sido selecionado para a cirurgia veio no dia seguinte. Manoel confessa que achou que não passaria na seleção por causa da idade avançada, por isso recebeu a boa nova com alegria.

“Tô ansiosa feito mãe”, confessa Fátima. “Nem sei como vou reagir depois. Já tô até imaginando como ele vai ficar”, comenta.

Ela entrega que Manoel se preparou para o grande dia: cortou o cabelo, as unhas e escolheu uma camisa bonita para ir ao hospital, como se fosse uma festa.

Fátima conta também um segredo de Manoel: seus filhos não sabem que ele vai operar a fenda. “Só vou ligar pra minha filha depois que acontecer”, confessa ele. “Ela sabia que eu vinha pra Porto Velho pra fazer exames, mas não falei da cirurgia”.

***

O grande dia chega. 

“Manoel”. O nome ecoa pela sala de espera. Ele está preparado para a cirurgia: gorro na cabeça, proteção nos pés e avental azul.

Manoel se levanta com a calma habitual e entra na sala. 

***

A cirurgia começou por volta das 10h. Às 12h, Fátima ainda aguarda ansiosamente ser chamada para reencontrar seu marido. “Quando a gente voltar pra casa vai ter festa!”, vibra ela. “Tô louca pra tirar uma foto e mandar pros parentes todos”.

Mas e a surpresa?

“Ah, a ansiedade não deixa a gente esperar”, diz. “Quero ver esse sorriso novo no rosto dele!”

A espera termina poucos minutos depois.

No momento do reencontro, o sorriso largo no rosto de Fátima encontra o tímido sorriso de Manoel. Palavras não precisam ser ditas nesse momento. Ambos sabem que uma nova etapa começa na vida dele. Mesmo aos 63 anos de idade, Manoel ainda tem uma longa vida (nova) pela frente.

“Toda criança que nasce com deformidade facial é nossa responsabilidade. Se nós não cuidarmos dessa criança, não há nenhuma garantia de que outra pessoa o fará.”

- Kathy Magee, cofundadora e presidente da Operação Sorriso